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Crítica | Gênesis, de Robert Crumb

por Luiz Santiago
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Eu não acho que “Gênesis” seja um lugar ideal para se procurar por moral e espiritualidade.

Robert Crumb

Quando eu estava lendo o livro de Gênesis desenhado pelo iconoclasta Robert Crumb, tive a oportunidade de comentar com um amigo sobre o efeito da obra no leitor, as brilhantes escolhas do artista e como ele executou o projeto. E então ouvi a seguinte pergunta: “tá, mas é a Bíblia, ipsis litteris, só com desenhos descritivos? Qual é a graça disso?”. Lembro que minha resposta não convenceu muito, e a conversa acabou indo para o universo dos roteiros de quadrinhos e se perdeu no abismo.

Se pararmos pra pensar, não há realmente muita graça na descrição sobre o que é a Gênesis de Robert Crumb. Teoricamente parece a versão adulta daqueles Bíblias ilustradas que os pais ou padrinhos dão de presente às crianças durante o período de catequese ou escolinha dominical.

Sabendo que a concepção da obra era trazer com fidelidade e sem nenhuma alteração todas as palavras do livro de Gênesis, coube ao artista apenas ilustrar e diagramar o volume. Tecnicamente, nada demais, e uma coisa realmente sem graça.

plano critico genesis no principio

“No princípio criou Deus os Céus e a Terra […]”

Mas antes de partirmos daquele princípio de julgar o livro pela capa (ou pelo que se fala dele), é importante pensarmos um pouco sobre algumas questões. Em primeiro lugar: você já leu o livro de Gênesis? Eu, por exemplo, já havia lido o texto bíblico, mas pela seriedade com que se toma a leitura da Bíblia e o foco na linha sequencial e lógica das coisas e não em sua estrutura de composição ou narrativa, deixamos passar alguns detalhes… digamos… “sórdidos”.

Mesmo que você não tenha lido o livro de Gênesis, é muito provável que saiba alguns de seus temas principais: a criação do mundo e de toda a matéria viva, as gerações a partir de Adão e Eva, o dilúvio, Sodoma e Gomorra, os patriarcas e José do Egito, o poderoso braço direito do Faraó. Quando falamos desses fatos bíblicos, em sua forma natural de leitura, não paramos para pensar nas implicações dos acontecimentos ou para aplicar juízos de valor às ações dos Homens e de Deus. E é nesse ponto que a escolha de Crumb não poderia ser mais importante: ao optar pelo texto original e distanciar ao máximo o leitor da obra através de seus desenhos, além de diagramar as páginas em uma lógica narrativa para cada capítulo, o autor logra abrir os nossos olhos para o que sempre esteve lá e para o que nunca prestamos a devida atenção.

A questão aqui não é necessariamente o texto, mas forma visual e o ritmo/organização de leitura dados a ele. Ora, o leitor já deve ter visto as inúmeras pinturas renascentistas que contam as mais diversas histórias bíblicas, ou tentam reproduzir os profetas, os anjos e os homens da Antiguidade. O “texto” é sempre o mesmo, o que muda de uma pintura para outra são as formas diferentes de se ver o fato – e olha que nem é preciso recorrer a Bosch para pensarmos em um modo diferente de ver os sete pecados capitais, os demônios, o inferno. Se Crumb reproduzisse o texto e corrigisse todas as suas chateantes repetições, traduzisse de maneira a “fazer sentido” aos dias de hoje e ajustasse tudo numa sequência clássica e limpa de leitura, essa gênese seria um eco patético do original, como muitos livros religiosos que circulam por aí e cuja única função é repetir o que pode ser encontrado na fonte.

plano critico capa genesis robert crum adao e eva saindo do paraíso

Robert Crumb não precisou desfigurar Deus para deixar claro o genocídio que foi o dilúvio e Sodoma e Gomorra; ou que o Todo Poderoso manteve seu poder ativo através de alianças reafirmadas de geração a geração (um Deus político!), ligando o seu poder diretamente à existência do Homem. Também não precisamos de palavrões ou diálogos sarcásticos para perceber que Deus nunca se importou muito quem não fosse hebreu, ou que há histeria, incesto, traição, assassinato, mentiras, adultério, prostituição, roubo, engano, parricídio, sexo e guerra a perder de vista nos 50 capítulos do livro bíblico, que também é uma fonte histórica, se soubermos lê-lo. Não são necessárias incursões políticas ou feministas para percebermos a caótica adequação de governos e a enorme importância das mulheres até um determinado momento da história. E por mais incrível que pareça, está tudo lá na Bíblia, o que Crumb faz foi tornar a leitura mais vívida, com detalhes escancarados e aberturas para debates de conceitos morais e éticos que não necessariamente ocorrem através de outro modo de consulta.

Com esse material em mãos, todo o esforço foi canalizado para outro campo, não era preciso criar a loucura, apenas mostrá-la. Como o próprio autor sentenciou, em entrevistas posteriores ao lançamento do livro: a Bíblia não precisa ser satirizada. Ela já é totalmente louca.

Gênesis (The Book of Genesis) — EUA, 2009
Roteiro: Moisés (retirado na íntegra da Bíblia Hebraica)
Arte e concepção geral: Robert Crumb
Editora nos EUA: W. W. Norton & Company (224 páginas).
Editora no Brasil: Conrad Editora, 2009
216 páginas

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